quinta-feira, 24 de julho de 2008

Perfeição

Alice era daquele tipo de pessoa que gostava de viver das mentiras.
Fossem mentiras que ela mesma inventava pra si, ou daquele tipo de "mentiras sinceras" que diziam pra ela.
Pra Alice, sua vida era perfeita em tudo. Como não tinha trabalho, a casa a ocupava o dia todo. Não havia casa como aquela. Nada ficava fora do lugar por mais que alguns minutos, não havia pó nas estantes e nem em qualquer outro lugar, o guarda-roupa era todo dividido por ocasiões, cores, estações do ano.Aquela era uma casa que beirava à perfeição.

Seu marido, gabava ela, era o típico executivo bem sucedido, ficava a maior parte do tempo trancafiado dentro de um escritório, na frente de um computador, tomando decisões importantes, pensando em lucros e porcentagens.

Ela passava o dia todo fazendo coisas que poderiam agradá-lo. Além de arrumar a casa, ela fazia as compras, o jantar, sempre pensando nos gostos do marido. Hoje era um dia especial, pensou ela. Afinal, dois anos juntos eram muita coisa. Saiu às compras. Comprou um vinho tinto, seco, caro. Com certeza ele gostaria. Velas, frutos-do-mar, vestido curto vermelho, sandália nova. Passou horas no cabelereiro e fez um retoque geral, cabelo, unhas, sombrancelha, maquiagem.
Saiu de lá prestes a explodir de tanto entusiasmo. A noite não poderia não ser perfeita.
Em casa, arrumada, mesa posta, velas acesas, perfume francês no decote, Alice esperava. Ele não demoraria à chegar.

Mas ele não lembrara dessa data, não lembrara dos dois anos, aliás, não lembrara nem do primeiro mês. Sempre fora assim, ele deixava o assunto do relacionamento dos dois para que Alice cuidasse. Ele se preocuparia só com as contas de casa, com os problemas do escritório. Assim, ele nunca enxergou problemas no seu casamento, nunca teve uma só discussão com Alice, melhor casamento ele não poderia encontrar.
E hoje, excepcionalmente hoje, noite de sexta ele resolveu sair com os amigos, tomar um chopp, falar mal do chefe e dos investidores gringos que estavam de visita.

Alice esperara, uma, duas, três horas até que pegou no sono, ainda com o pensamento na cabeça: "Ele já está chegando, deve ter tido algum problema no trabalho. Sempre muito ocupado coitado!" Quando chegou, Léo a encontrou jogada no sofá, maquiagem impecável, mas os cabelos já desgrenhados, esperava há muito tempo!Olhou pra mesa, as velas já apagadas, só o toco. Jantar frio, vinho quente.Lembrou-se dos dois anos, mas não quis acordar Alice. Pensou:"Tudo sempre tão perfeito! Coitada!"
Ele a carregou pro quarto e deitou-a na cama, tirou as sandálias, sentiu o aroma doce que vinha dela.Quis acordá-la, quis dizer o quanto sentia, o quanto ela não merecia aquilo, o quanto ele era desmazelado com tudo, o quanto ele já não mais pensava nos dois, e isso doía. Mas ele não conseguia explicar. Não conseguia dizer o quanto se sentia melhor com os amigos do que em casa. Não conseguia dizer à ela o quanto ele se incomodava com toda aquela perfeição em volta, com toda aquela pressão em cima dele. Omitia palavras, gestos e ações pelo simples fato de não querer que tudo aquilo se desmanchasse, como numa peça de teatro as falas eram dispostas cuidadosamente para que não quebrasse a mágica, aquela mágica perfeição.E então ele a deixou lá, tirou a mesa, lavou as louças e foi se deitar tentando se livrar daquela angústia, por que ele sabia que amanhã ele inventaria uma desculpa sobre como ele trabalha demais naquela empresa e que não pôde chegar mais cedo, mandaria flores pra ela e ela entenderia. Alice sempre entendera.
A compreensão era, ali, o primeiro passo para a perfeição.

2 comentários:

Adrielly Soares disse...

Eu sou a favor do diálogo, mas ele tem tanto medo de magoar ela que não vai dizer que ele não gosta de tanta perfição e arrumação.
eu não gosto de pessoas covardes, que escondem o que sentem ou o que pensam.

Ps. A gente tá evoluindo junto. 0/


eeuteamodemais.
;)

♥MáH♥ disse...

Que triste...
Perfeição também distrói...não existe um modelo ideal a se seguido, a não ser aqueles que inventamos... se inventamos, é pq pe mentira, e se é mentira não existe, e se não existe não se pode medir o que é perfeito ou não
=/
Aff.... meio filosófica hpje né?
rsrs
:p
Beijinhos...