domingo, 16 de novembro de 2008

Clarice Lispector

Rifa-se um coração quase novo.
Um coração idealista.
Um coração como poucos.
Um coração à moda antiga.
Um coração moleque que insiste em pregar peças no seu usuário.

Rifa-se um coração que na realidade está um pouco usado, meio calejado, muito machucado e que teima em alimentar sonhos e, cultivar ilusões. Um pouco inconseqüente que nunca desiste de acreditar nas pessoas. Um leviano e precipitado coração que acha que Tim Maia estava certo quando escreveu: "não quero dinheiro, eu quero amor sincero, é isso que eu espero..."
Um idealista...
Um sonhador...

Rifa-se um coração que nunca aprende. Que não endurece, e mantém sempre viva a esperança de ser feliz, sendo simples e natural. Um coração insensato que comanda o racional sendo louco o suficiente para se apaixonar. Um furioso suicida que vive procurando relações e emoções verdadeiras.

Rifa-se um coração que insiste em cometer sempre os mesmos erros. Esse coração que erra, briga, se expõe. Perde o juízo por completo em nome de causas e paixões. Sai do sério e, às vezes revê suas posições arrependido de palavras e gestos.
Este coração tantas vezes incompreendido.
Tantas vezes provocado.
Tantas vezes impulsivo.

Rifa-se este desequilibrado emocional que abre sorrisos tão largos que quase dá pra engolir as orelhas, mas que também arranca lágrimas e faz murchar o rosto. Um coração para ser alugado, ou mesmo utilizado por quem gosta de emoções fortes. Um órgão abestado indicado apenas para quem quer viver intensamente, contra-indicado para os que apenas pretendem passar pela vida matando o tempo, defendendo-se das emoções.

Rifa-se um coração tão inocente que se mostra sem armaduras e deixa louco seu usuário. Um coração que quando parar de bater ouvirá o seu usuário dizer para São Pedro na hora da prestação de contas:
- "O Senhor pode conferir. Eu fiz tudo certo, só errei quando coloquei sentimento. Só fiz bobagens e me dei mal quando ouvi este louco coração de criança que insiste em não endurecer e se recusa a envelhecer".

Rifa-se um coração, ou mesmo troca-se por outro que tenha um pouco mais de juízo. Um órgão mais fiel ao seu usuário. Um amigo do peito que não maltrate tanto o ser que o abriga. Um coração que não seja tão inconseqüente.

Rifa-se um coração cego, surdo e mudo, mas que incomoda um bocado. Um verdadeiro caçador de aventuras que ainda não foi adotado, provavelmente, por se recusar a cultivar ares selvagens ou racionais, por não querer perder o estilo.

Oferece-se um coração vadio, sem raça, sem pedigree. Um simples coração humano. Um impulsivo membro de comportamento até meio ultrapassado. Um modelo cheio de defeitos que, mesmo estando fora do mercado, faz questão de não se modernizar, mas vez por outra, constrange o corpo que o domina. Um velho coração que convence seu usuário a publicar seus segredos e a ter a petulância de se aventurar como poeta.

domingo, 9 de novembro de 2008

Demais.

Era quase antagônico o jeito como ela encarava a vida.
Se pedisse que alguém a descrevesse a palavra mais dita seria intensidade.
Sempre fora assim com todos ao seu redor. Ela transpirava emoções que teimavam em não querer ficar somente à flor da pele. Era energia vibrante entre palavras, gestos e fios de cabelos.
Tudo era sempre demais pra ela.
Amar ou odiar demais, querer ou repulsar demais, acreditar ou ser cética demais, se iludir ou decepcionar demais. Demais, demais ela procurava o seu eixo, o seu equilíbrio.
E era engraçado o modo que ela usava de encontrar o meio termo.
Quanto mais decepções ela tinha, mais ela tratava de se levantar depressa, tirar a poeira e abrir um largo e belo sorriso de novo. Mas esse sorriso não tinha intenções, não era pra chamar atenção. O sorriso era pra ela só. Ela ria das desilusões e ria de si mesma, do próprio azar ou de como ela tinha colocado expectativas demais em cima de coisas tão pequenas.
Mas ela era demais, demais em tudo e era isso que preenchia ela de um modo que ninguém jamais poderia entender.
Seria mais fácil quem sabe se ela tivesse parado pra reclamar, da falta de sorte ou de caras que realmente tenham valido à pena, mas reclamar era uma coisa que gastava tanta energia dela. Era muito mais fácil se ela simplesmente sentasse num bar com as amigas e falasse meia dúzia de besteiras que a fizesse rir até a barriga doer e as preocupações desaparecerem.
O fato é que exitiam coisas que valiam muito mais a pena do que meras lamentações e lamentar era perder tempo demais.
E perder tempo era uma coisa que ela não gostava demais.
Talvez ela tenha perdido oportunidades importantes somente por que estava procurando aquilo que pudesse dar certo demais, que a tornasse a pessoa perfeita não enxergando que talvez as coisas poderiam somente dar certo e nada mais que isso.
Mas ela não esperava que ele trouxesse uma rosa e sim um buquê inteiro, ela não esperava um sorriso e sim um abraço apertado, ela não esperava alguém, ela esperava o príncipe encantado num cavalo branco.
E então mais uma vez ela se levantava e se vestia de qualquer outra princesa de conto de fadas e voltava a esperar ele com o seu buquê e seu abraço apertado.