sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Metades inteiras

Não, não dá mais pra continuar Helena. E não tente me convencer mais uma vez com todos os seus discursos de que eu estou apenas passando por uma má fase. Você sabe que tudo isso é muito mais do que uma simples fase.
No começo, quando tudo ainda era blues e jazz nos sábados à noite, nos barzinhos aconchegantes da cidade e eu acordava no outro dia com seu cheiro pelo meu corpo, roupas e cabelo. Quando nós ainda éramos mais do que esse simples casal no qual nos tornamos era tudo mais fácil, mais simples. E eu me sentia mais eu, sentia que me encontrava em você, via cada movimento e cada suspiro meu no reflexo dos seus olhos negros que pareciam águas sem fim, e eu poderia ficar ali, nadando a eternidade. Você também era melhor, nós eramos melhores juntos e sabíamos disso.
Você foi roubando pedaços de mim e se apoderava deles, se incorporava de cada gesto, riso e sentimento, assim como eu sentia que também tinha pedaços seus em mim. Éramos metades inteiras.
Mas você não entendeu quando eu disse que estava me perdendo. E olha, eu não estava falando de você me perder. Eu estava falando de mim. Você tinha me sugado todas as forças Helena, todas aquelas frestas que se guarda de si mesmo pra não se perder no meio do caminho. E eu me perdi. O que existia era o Ricardo marido da Helena e, às vezes, o gerente do banco. Mas nunca o Ricardo Faria, aquele com um grande sorriso no rosto e cara de menino deslumbrado com a vida. E tudo isso, o que você chamava de crise Helena, isso era eu. Era eu percebendo o quanto estava oco, o quanto não me pertencia mais. Quem eram os meus amigos se não os maridos de suas melhores amigas? E digo, isso não era apenas uma coincidência era? Você não os tinha feito meus amigos desde o primeiro dia em que visitaram nossa casa? Penso como me deixei ficar tão ausente de mim mesmo. E eu tentei me resgatar, entende? Eu tentei fazer de todas as formas você entender que eu tinha uma vida só minha e que eu precisava vivê-la sozinho, não que você não fizesse parte dela, aliás, era exatamente isso, você era parte dela e não ela inteira. Mas a cada dia que eu me sentia mais dono de mim, percebia que perdia um pedaço de você.
Será que não havia um modo de sermos de novo metades inteiras?
Assim como o tempo foi passando, fui descobrindo o quanto estava ausente do mundo, o quanto era alienado de mim, mas não deixava de reparar em você. E você estava sofrendo com isso não é Helena? E quantas vezes eu precisei te dizer que eu não estava traindo você, que eu ainda te amava e não havia razão para você pensar diferente? Quantas vezes eu tentei te explicar o que você nunca entendeu, o que você chamava de egoísmo. Você não conseguia viver sem alguém pra chamar de seu, pra ser ser preenchimento em naquele espaço vazio que guardamos lá dentro. Mas há diversas maneiras de se preencher esse espaço sabia Helena? E eu descobri que mesmo com você e nossa vida perfeita, esse espaço ainda continuava vazio, oco, pedindo mais. Ah não, por favor, não me venha com essa de loucura outra vez está bem?
Sabe, eu tentei, eu juro que tentei e fiz o melhor que eu pude pra nos salvar, pra te mostrar o que eu tinha enxergado, mas você continuava intacta e insistindo que tudo era uma fase e que íamos superar. Mas eu não consigo mais me esconder aqui dentro de novo Helena, não posso mais renunciar à mim assim como também não quero renunciar à você.
Talvez você entenda um dia e venha me procurar. Talvez também se encontre em um desses seus passeios matinais espairecendo a cabeça. Talvez nunca compreenda o que venho passando esses anos e continue pensando que te abandonei. Talvez compreenda, mas nunca me perdoe.
Mas você sabe Helena, no fundo você sabe que eu sempre estarei esperando você voltar com aquele sorriso de menina. Eu estarei esperando.

Seu, todo seu,
Ricardo Faria